RETRATO DA SEMANA

RETRATO DA SEMANA

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

PABLO, O DOMADOR DE CAVALOS.


 
Reza a lenda que em seu catre de morte Don Maurício rogou aos filhos que jamais despedissem Pablo da Estância Meia Noite, a maior e mais rica da região, da qual era patrão. Tal pedido seria motivado pela razão de que Pablo esteve presente desde os tenros momentos em que a Meia Noite ainda era um sítio e dava seus primeiros passos. 

Outros falam que isto é uma meia verdade. Realmente, Pablo, jamais seria dispensado de suas lides na afamada estância, mas tal compromisso originara-se da palavra, do fio-de-bigode, entre Pablo e o fazendeiro. Continuaria trabalhando ali desde que não corresse riscos de desemprego e seu salário fosse o mais alto de toda a bugrada. Como precisava de seus conhecimentos, Don Maurício acabou concordando.   

Mas quem era Pablo? 

Pablo era um domador de cavalos que aquerenciou-se por aquelas bandas depois de uma infância pobre e de alguns assanhamentos com a polícia. 

Mas não era um simples domador de cavalos. Era um grande ginete. Rápido no raciocínio, "garrador" num lombo, primeiro amansava de baixo, depois de alguns gritos já encilhava, boleava a perna e saia descendo o mango na matungada da fazenda. Adepto da doma tradicional, com ele não tinha muita conversa. 

Sempre com um "palheiro" no canto da boca retorcida, Pablo dividia opiniões e sentimentos. Era amado e odiado ao mesmo tempo. Tinha para si mesmo que era um gênio naquilo que fazia e, sendo assim, imaginava eternidade na função. Humildade era palavra que não lhe fora apresentada. 

Fruto desta importância o caboclo tinha muitas regalias. Isto ocasionava um certo ciúme no restante da peonada.  

Não foram poucas as vezes em que Pablo trançou ferros com outros empregados mas, por ser protegido do patrão, sempre saiu-se de lombo liso...  

Certa feita, já meio alquebrado pela idade, ainda campeou forças para chegar as vias de fato com um rapazote, também domador, que estava ganhando espaço na sala pois chegou nesta querência sulina com uma novidade: A Doma Racional, ou seja, aquela em que mais vale o jeito do que a força.  

Aquilo era algo insuportável para Pablo. 

Dizem que nesta pendenga até as muletas que serviam de amparo ao velho quebrador de queixos foram parar nos costados deste "fedelho".  

Pablo percebia que estava perdendo terreno na função de arrucinar a potrada. Os filhos do patrão gostavam por demais deste novo qüera que além de tudo carregava o nome de rei. David.   

Após esta pendenga e respeitando a vontade do velho, os filhos decidiram que David e Pablo não mais domariam no mesmo curral. Por fim acabaram transferindo o rapaz para uma estância além fronteiras... 

Mesmo longe, Pablo o odiava. De todas as suas rusgas esta fora a que mais o irritara. Como um recém saído dos qüeros tinha o topete de enfrentá-lo? De chamá-lo de "canalha"? 

Mas esta não foi a primeira e não seria a última encrenca deste agora veterano domador que perdendo as forças nos braços duplicava o poder da língua. 

Em meio a uma trova, no mesmo galpão da Estância Meia Noite, onde a gauchada se reunia para prosear, tomar uns mates, cuspir nas cinzas e contar dos afazeres, Pablo acabou peleando com um rústico alambrador (construtor de cercas) que também tinha diversos anos de serviços prestados àquela gente tradicional.  

Da família dos Bragas este cerqueiro era crioulo de Santana, na divisa com o Uruguai. Aliás, Uruguai cujo povo Pablo detestava. 

Ofensas as progenitoras foi o que mais se ouviu neste bate-bocas que só não chegou ao "já te pego e já te largo" porque o capataz, um xiru metido a cantor, apartou os briguentos.   

Para os herdeiros da Meia Noite, aquilo foi a gota d'àgua. Como sempre, a corda acabou arrebentando no lado mais fraco e o fronteiro esticador de arames, apesar do longo tempo dedicado ao patrimônio de Don Maurício, acabou no corredor que dava na cancela sem volta. 

Para o domador, sempre respeitando o pedido do saudoso patrão, sobrou um afastamento temporário sem prejuízo ao bolso da bombacha... 

Mas a história não finda aí. 

Numa hábil manobra e sem contrariar a vontade do finado Don Maurício, reculutaram o rapazote David, guri de futuro que andava meio extraviado pros lados dos gringos, para o lugar de Pablo, deixando para este que fora o esteio da querência, apenas alguns potros sem serventia, sem sangue e sem confirmação. Coisa para se domar num "upa", num fim de semana. Só para não dizer que andejava por ali de valde. A doma pesada, de respeito,  do dia-a-dia, passara agora ao cerrar das pernas cambotas deste gauchito com tendências urbanas.  

Isto, para Pablo, foi pior que uma demissão sumária da estância. Foi além de um mangaço na testa, de um corte profundo de adaga pois, embora sua guaiaca continuasse estufada, seu brio foi atingido por esporas nazarenas de rosetas afiadas. Ser substituído por seu maior inimigo naquilo em que ele sempre foi especialista era como ser respondido como um "não" ao convidar a prenda mais linda do fandango para dançar. 

Viver de favor nos pelegos sem fletes de um galpão da estância não deveria ser o desfecho adequado para um peão que tudo fez.  

Para um domador de cavalos, como os pingos que adestrou e ficaram velhos depois de anos na lida, o melhor destino é a liberdade, o cheiro da terra, o campo aberto, as longitudes pampeanas. Mas aí as patacas minguariam, la plata não correria em abundância nas tascas e jogatinas. 

Só que para situações assim criaram um dito: LIBERDADE NÃO TEM PREÇO.   
 
 
Texto: Léo Ribeiro
Gravura: Carlos Montefusco