Reza a lenda que em seu catre de
morte Don Maurício rogou aos filhos que jamais despedissem Pablo da Estância
Meia Noite, a maior e mais rica da região, da qual era patrão. Tal pedido seria
motivado pela razão de que Pablo esteve presente desde os tenros momentos em
que a Meia Noite ainda era um sítio e dava seus primeiros passos.
Outros falam que isto é uma meia
verdade. Realmente, Pablo, jamais seria dispensado de suas lides na afamada
estância, mas tal compromisso originara-se da palavra, do fio-de-bigode, entre
Pablo e o fazendeiro. Continuaria trabalhando ali desde que não corresse riscos
de desemprego e seu salário fosse o mais alto de toda a bugrada. Como precisava
de seus conhecimentos, Don Maurício acabou concordando.
Mas quem era Pablo?
Pablo era um domador de cavalos
que aquerenciou-se por aquelas bandas depois de uma infância pobre e de alguns
assanhamentos com a polícia.
Mas não era um simples domador de
cavalos. Era um grande ginete. Rápido no raciocínio, "garrador" num
lombo, primeiro amansava de baixo, depois de alguns gritos já encilhava,
boleava a perna e saia descendo o mango na matungada da fazenda. Adepto da doma
tradicional, com ele não tinha muita conversa.
Sempre com um
"palheiro" no canto da boca retorcida, Pablo dividia opiniões e
sentimentos. Era amado e odiado ao mesmo tempo. Tinha para si mesmo que era um
gênio naquilo que fazia e, sendo assim, imaginava eternidade na função. Humildade
era palavra que não lhe fora apresentada.
Fruto desta importância o caboclo
tinha muitas regalias. Isto ocasionava um certo ciúme no restante da peonada.
Não foram poucas as vezes em que
Pablo trançou ferros com outros empregados mas, por ser protegido do patrão,
sempre saiu-se de lombo liso...
Certa feita, já meio alquebrado
pela idade, ainda campeou forças para chegar as vias de fato com um rapazote,
também domador, que estava ganhando espaço na sala pois chegou nesta querência
sulina com uma novidade: A Doma Racional, ou seja, aquela em que mais vale o
jeito do que a força.
Aquilo era algo insuportável para
Pablo.
Dizem que nesta pendenga até as muletas
que serviam de amparo ao velho quebrador de queixos foram parar nos costados deste
"fedelho".
Pablo percebia que estava
perdendo terreno na função de arrucinar a potrada. Os filhos do patrão gostavam
por demais deste novo qüera que além de tudo carregava o nome de rei.
David.
Após esta pendenga e respeitando
a vontade do velho, os filhos decidiram que David e Pablo não mais domariam no
mesmo curral. Por fim acabaram transferindo o rapaz para uma estância além
fronteiras...
Mesmo longe, Pablo o odiava. De
todas as suas rusgas esta fora a que mais o irritara. Como um recém saído dos
qüeros tinha o topete de enfrentá-lo? De chamá-lo de "canalha"?
Mas esta não foi a primeira e não
seria a última encrenca deste agora veterano domador que perdendo as forças nos
braços duplicava o poder da língua.
Em meio a uma trova, no mesmo
galpão da Estância Meia Noite, onde a gauchada se reunia para prosear, tomar
uns mates, cuspir nas cinzas e contar dos afazeres, Pablo acabou peleando com
um rústico alambrador (construtor de cercas) que também tinha diversos anos de
serviços prestados àquela gente tradicional.
Da família dos Bragas este
cerqueiro era crioulo de Santana, na divisa com o Uruguai. Aliás, Uruguai cujo
povo Pablo detestava.
Ofensas as progenitoras foi o que
mais se ouviu neste bate-bocas que só não chegou ao "já te pego e já te
largo" porque o capataz, um xiru metido a cantor, apartou os briguentos.
Para os herdeiros da Meia Noite, aquilo
foi a gota d'àgua. Como sempre, a corda acabou arrebentando no lado mais fraco
e o fronteiro esticador de arames, apesar do longo tempo dedicado ao patrimônio
de Don Maurício, acabou no corredor que dava na cancela sem volta.
Para o domador, sempre
respeitando o pedido do saudoso patrão, sobrou um afastamento temporário sem
prejuízo ao bolso da bombacha...
Mas a história não finda aí.
Numa hábil manobra e sem
contrariar a vontade do finado Don Maurício, reculutaram o rapazote David, guri
de futuro que andava meio extraviado pros lados dos gringos, para o lugar de
Pablo, deixando para este que fora o esteio da querência, apenas alguns potros sem
serventia, sem sangue e sem confirmação. Coisa para se domar num "upa",
num fim de semana. Só para não dizer que andejava por ali de valde. A doma
pesada, de respeito, do dia-a-dia, passara
agora ao cerrar das pernas cambotas deste gauchito com tendências urbanas.
Isto, para Pablo, foi pior que
uma demissão sumária da estância. Foi além de um mangaço na testa, de um corte
profundo de adaga pois, embora sua guaiaca continuasse estufada, seu brio foi
atingido por esporas nazarenas de rosetas afiadas. Ser substituído por seu
maior inimigo naquilo em que ele sempre foi especialista era como ser
respondido como um "não" ao convidar a prenda mais linda do fandango
para dançar.
Viver de favor nos pelegos sem
fletes de um galpão da estância não deveria ser o desfecho adequado para um
peão que tudo fez.
Para um domador de cavalos, como
os pingos que adestrou e ficaram velhos depois de anos na lida, o melhor
destino é a liberdade, o cheiro da terra, o campo aberto, as longitudes
pampeanas. Mas aí as patacas minguariam, la
plata não correria em abundância nas tascas e jogatinas.
Só que para situações assim
criaram um dito: LIBERDADE NÃO TEM PREÇO.
Texto: Léo Ribeiro
Gravura: Carlos Montefusco