RETRATO DA SEMANA

RETRATO DA SEMANA
A tomada da Ponte da Azenha, do pintor Augusto Luiz de Freitas (Instituto de Educação General Flores da Cunha, Porto Alegre/RS)

quarta-feira, 5 de abril de 2023

 

REVOLUÇÃO DE 1923 - PARTE VI

O Leão do Caverá


 

A mais destacada das tropas revolucionárias de 23 era constituída por gente de São Francisco de Assis, Rosário, Alegrete, Quaraí e Uruguaiana; obedecia ao comando de Honório Lemes, conhecido como o Leão de Caverá.

Coube-lhe operar no terreno mais desfavorável ao tipo de luta empreendida, porque a região da chamada campanha do Rio Grande só dispõe de suaves ondulações e de vegetação rasteira, o que dificulta ocultar a presença e a movimentação de tropa face ao inimigo. Honório Lemes enfrentou também o adversário mais brilhante e pertinaz, o Coronel Flores da Cunha, que era auxiliado pelas forças do Coronel Claudino e pelo próprio comandante geral da Brigada Militar, Coronel Amadeu Massot.

Honório Lemes não tinha o aspecto e a sobranceria dos caudilhos tradicionais. Tratava a qualquer soldado como a um igual. "Confiava em seus homens, que por sua vez lhe retribuíam a confiança, e não os importunava com detalhes". O efetivo de sua tropa chegou a atingir cerca de 3 mil homens. Lemes era um chefe carismático. Usava um linguajar típico, entremeado de corruptelas e com inflexões peculiares à gente do sul; era sagaz e inteligente; ditava as ordens "com termos certos, frases sóbrias, adequadas, com o ritmo e as pausas indicando e a espécie qualitativa da pontuação". Alguns chegavam a admitir que "a sua atuação nessa luta o colocava na vanguarda dos guerrilheiros da América do Sul".

Logo depois de rebelar-se em Vacaiquá e assumir em Alegrete uma função de chefia, Lemes ocupou Rosário e Quaraí, então desguarnecidas, e depois (30 de março) marchou sobre Uruguaiana, defrontando-se pela primeira vez com as tropas de Flores da Cunha. Parece que seu intento era fazer de Uruguaiana a sede de governo do candidato libertador, criando as condições de dualidade de poderes necessárias à intervenção federal. Durante três dias cercou a cidade, mas, faltando-lhe munição e outros recursos, não teve outra alternativa senão levantar o assédio.

Flores da Cunha iniciou a perseguição – que só terminaria com o armistício –, tentando deixar Honório entre suas tropas e as do Coronel Claudino, mas ele retraiu para Caverá, onde se juntaria com a força de Estácio Xavier de Azambuja, dando combate a Claudino no Santa Maria Chico em 15 de maio. Em Posto Branco, na Fazenda da Serra, esperou durante três dias e três noites para fechar o cerco em torno dos grupos de Claudino. Sem armas e sem munição suficiente para liquidar o adversário, Honório teve de permitir a retirada de Claudino para Rosário. Pouco depois, em Santa Rosa, no Caverá, enfrentou e derrotou a brigada de Flores da Cunha, que se dispersou, levando cerca de 15 dias para se reorganizar em Livramento, de onde partiria para Quaraí e depois para Alegrete, a fim de alcançar novamente as tropas de Honório. Destacou-se em Santa Rosa a atuação de Maurício de Abreu, descendente do Barão do Cerro Largo, que Honório, em campanha, promoveu a coronel. Nesse combate, conta Antero Marques, um grupo de revolucionários foi isolado e perseguido pelos borgistas que os iam alcançando e matando. O último sobrevivente teve o cavalo morto e rodou espetacularmente. Então o líder dos perseguidores gritou a seus homens:

"Este é meu! Deixem este pra mim!... Atendam os outros. O vulto do revolucionário destacou-se por instantes, solito, parado, quieto, como resignado à espera do destino, ao lado do seu cavalo morto; o agaloado representante do amor por princípio, no ímpeto em que ia deu de espora e esbarrou-lhe o cavalo em cima, para ultimá-lo, recebendo de golpe e de improviso, à queima-roupa, o tiro que o abateu; no mesmo instante e ao mesmo tempo, o fugitivo saltou-lhe no cavalo, que era excelente e deu boca; debalde os comandados, de súbito surpresos e atônitos com o inesperado do lance, tentaram sem poder alcançá-lo uma perseguição para vingar o chefe".

Honório seguiu depois para São Francisco de Assis, que as tropas borgistas, muito reduzidas, abandonaram, e daí para São Gabriel e Alegrete, onde se travou o renhido combate de Ibirapuitã.

Flores da Cunha ressaltou nesse episódio a bravura de combatentes incógnitos, como aquele que "ferido à bala no rosto, com orifício de entrada e de saída, quase exangue, dessangrando", tentava novamente montar para prosseguir na peleja; ou daquele outro que "debaixo de uma chuva de projéteis, à vontade, tirava os arreios de seu cavalo morto e encilhava outro, que trazia a cabresto, de depois de apertar a cincha, ainda fez o gesto costumeiro de todo o homem do campo: segura em ambas as cabeças do lombilho, acomodando-o para que se assentasse melhor no lombo do cavalo".

No combate de lbirapuitã morreram os chefes revolucionários Maurício de Abreu, Gabriel e Delfino Timbaúva e Guilherme Flores da Cunha, irmão do Coronel Flores da Cunha, que foi ferido assim como Oswaldo Aranha.

Sempre perseguido por tropas de Flores ou de Claudino, Honório combateu em Palomas, Passo da Cruz, Passo do Guedes, Vista Alegre e Poncho Verde. Percorreu os campos de Dom Pedrito, Quaraí e São Francisco, onde tombaram os defensores da cidade, liderados pelo Intendente Carlos de Oliveira Gomes. Prosseguindo para Santiago e São Luís, pelejou em Itaroquém, Carajazinho, São Lucas, Dilermando de Aguiar, Olhos d'Água, São Gabriel e no memorável encontro do Passo da Armada, descrevendo a Volta da Serra para aliviar ou salvar a coluna, acossada sem trégua.

Embora o Exército permanecesse neutro, muitos oficiais e sargentos participaram do movimento. Consta mesmo que se esperava que o 6º Regimento de Cavalaria, sublevando-se na guarnição de Alegrete, logo no início da revolta, aderisse aos bandoleiros. Na Volta da Serra, Honório Lemes penetrou em São Luís a convite da guarnição federal que se revoltara e prendera o comandante; o administrador da Fazenda Nacional em São Gabrielzinho colaborava com as tropas de Honório Lemes, permitindo passagem de tropas revolucionárias pela Fazenda Nacional; o governo estadual, por sua vez, contava com a assistência de vários oficiais superiores e até de generais.

Honório andava pelas imediações de Passo do Ricardinho, em Quaraí, em busca de munição, quando, apesar dos esforços em contrário do Coronel Flores da Cunha, foi alcançado pelos emissários do Marechal Setembrino de Carvalho, Ministro da Guerra, para a assinatura de um armistício.

Encontrando Honório Lemes, o Ministro da Guerra interpelou-o: "Mas afinal, o que é que os senhores querem?" Sem titubear, o inculto fazendeiro que chegara a general no curso da revolução respondeu: "Nós queremos leis que governem os homens e não homens que governem as leis".