RETRATO DA SEMANA

RETRATO DA SEMANA

sábado, 27 de fevereiro de 2021

VIDA LONGA A CULTURA GAÚCHA.

 

E AO TRADICIONALISMO? 


Sandra Veroneze

Em meio à polêmica quanto ao caráter racista ou não do Hino Riograndense, parei para refletir acerca de um dos argumentos apresentados nesta terra de ninguém chamada rede social: o de que existe uma campanha para desconstrução da figura do gaúcho, sua tradição e seus símbolos.

Ora, tanto mais simples se fosse verdade. A realidade dura é de que não existe um movimento organizado, com líderes e cabeças pensantes, que acordam todos os dias planejando e executando ações para enfraquecer e extirpar as raízes do Rio Grande do Sul e sua essência campeira. A tradição gaúcha tem inimigos menos visíveis e sua força, como tudo na vida, se deve a diversos fatores, internos e externos às entidades formalmente constituídas para honrá-la e preservá-la.

A tradição é um valor no mundo todo. Tanto é assim que algumas correntes atravessam milênios e continentes. O budismo tem cinco mil anos, o cristianismo tem dois mil anos. E alguns movimentos reconstrucionistas ganham força a cada dia. São exemplos o helênico, de resgate dos valores e ritualísticas do povo grego, e o celta, dos povos nórdicos.

O que faz essas tradições se manterem atuais e tão vivas entre nós? Em primeiro lugar, a posição de relevância que elas assumem na vida das pessoas e na sociedade. Em segundo, sua capacidade de adaptação aos novos tempos, que sempre chegam. A Igreja Católica não queima mais mulheres em praça pública e flexibilizou a regra das cerimônias oficiadas apenas em latim; os povos antigos não fazem mais sacrifícios de animais e humanos em honra aos seus deuses…

Estas tradições acompanharam a evolução natural da sociedade, tal qual o faz a cultura gaúcha. Hoje, para tomar meu chimarrão, aqueço a água em chaleira elétrica e uso cuia personalizada com meu nome e sobrenome. Para ouvir meus artistas preferidos, plugo a minha playlist do meu aplicativo preferido em qualquer aparelho que reproduza som. Para saborear um churrasco, morando em São Paulo e sem churrasqueira no apartamento, peço pelo celular.

Imagine se para amar e cultuar a cultura gaúcha, cumprindo o ritual do chimarrão, eu precisasse aquecer a água em chaleira de ferro sobre brasas. Ou se, para ouvir minhas músicas preferidas, eu precisasse do artista presencialmente cantando e tocando para mim?… Ou se, para comer um churrasco, eu precisasse antes ir no mato buscar lenha e pedaços de madeira para fazer os espetos?

A cultura gaúcha se adaptou, encanta onde é apresentada e está incrível e lindamente forte na mente e coração dos gaúchos de nascimento e aquerenciados. Ouso afirmar que praticamente toda população gaúcha tem pelo menos um ponto de contato com ela, seja pela gastronomia, pela música, pela literatura, pelo hábito do chimarrão. Integral ou parcialmente, é apreciada pelo gaúcho mais raiz até o mais desapegado.

E o tradicionalismo? Qual seu futuro?

A resposta se revela a partir de duas perguntas:

1 – O tradicionalismo gaúcho é relevante para as pessoas e sociedade?

2 – O tradicionalismo gaúcho demonstra potencial e capacidade de adaptação para os novos tempos?

Podemos ter algumas reflexões transversais:

– Seus valores e práticas acompanham o caminhar evolutivo natural da vida?

– Seus princípios cabem nas futuras gerações, de acordo com o cenário que conseguimos desenhar hoje para o amanhã, analisando as tendências?

– Existe algo do qual o tradicionalismo gaúcho deverá abrir mão, tal qual o fizeram tradições milenarmente mais antigas, como pressuposto para sobrevivência?

Da minha parte, desejo vida longa tanto à cultura quanto ao tradicionalismo gaúchos. Não acredito que ele seja para todos, da mesma forma que não o é gostar de futebol, ou de moto, ou de qualquer outro interesse em comum que forme grupos. Mas acredito que ele deva ser forte e pujante para todos que dele gostarem e quiserem fazer parte.

 

Sandra Veroneze | Editora DeGalpão