RETRATO DA SEMANA

RETRATO DA SEMANA
A tomada da Ponte da Azenha, do pintor Augusto Luiz de Freitas (Instituto de Educação General Flores da Cunha, Porto Alegre/RS)

quinta-feira, 10 de março de 2022

COMO SE FORJAM OS MITOS

 

Nesta madrugada perdi o sono - não foi por causa do Grêmio - e fui buscar alguma leitura na internet. De cara me abriu uma entrevista com Nilson Mariano elaborada pelo do jornal O Sul, em março de 2020, aonde o jornalista relata sobre seu livro que conta a vida do degolador maragato Adão Latorre personagem de duas das mais sangrentas revoluções do Rio Grande do Sul, ou seja, a Revolução Federalista de 1893 e a Revolução de 1923. 

É impossível falar nestas revoluções sem falar em degola. Também é impossível falar em degola sem se lembrar do nome de Adão Latorre (1835-1923) esse negro pobre, descendente de escravos que nasceu no Uruguai onde era conhecido por Adán (ou Adam) de la Torre.

Desde pequeno, lutou e trabalhou. Em 1851, aos 16 anos, alistou-se no exército uruguaio pelo Partido Blanco. Serviu nas tropas dos caudilhos orientais Timóteo Aparício e  Gumercindo e Aparício Saraiva (estes dois, irmãos), destacando-se em táticas de guerrilha e cargas de cavalaria ligeira. Paralelamente, participou dos levantes maragatos no Rio Grande do Sul. Circulava à vontade pelos territórios da fronteira, onde os hábitos e a geografia são os mesmos.

Interessante, nesta obra que vou tentar adquirir, é como se forjam situações e pessoas. Por exemplo. No combate do Rio Negro, hoje no município de Hulha Negra, Adão Latorre teria degolado "apenas" trinta pica-paus, e não os trezentos  relatados em livros. 

Vejam parte da entrevista: 

Jornal O Sul – O que motivou sua pesquisa sobre degola e o seu maior praticante, o coronel Adão Latorre?

Nilson Mariano – Sempre me atraíram esses personagens malditos, como o Adão Latorre, relegados ao esquecimento, varridos para debaixo do tapete da historiografia oficial. Penso que não se deve abordar somente os grandes personagens – generais, comandantes e chefes de nação –, os quais são homenageados com estátuas e viram nome de ruas, praças, até municípios. A história dos marginalizados, os párias, também precisa ser contada. São os que vão ao front, os que se lambuzam de sangue e executam as tarefas sujas, ordenadas por superiores. E a trajetória de Latorre excede, por ter protagonizado o maior massacre com o uso da degola em todos os combates já travados no Rio Grande do Sul.

Jornal o Sul - Latorre, que usava lenço vermelho no Rio Grande do Sul e branco no Uruguai, era uma espécie de mercenário da época?

Nilson Mariano - Não creio. Havia mercenários, valentões que lutavam por plata ou por promessa de saque, mas não foi o caso de Latorre. Como todo menino pobre (ainda mais se fosse negro ou mestiço), a sina era trabalhar como peão de estância ou se alistar nos exércitos. Latorre serviu a blancos e maragatos porque gravitava em torno dos caudilhos que comandavam os dois grupos. Maragatos e blancos se pareciam, eram dirigidos por grandes proprietários de terras, a elite de então. Tinham propósitos semelhantes, guardadas as proporções: insurgiam-se contra o centralismo do governo colorado (Uruguai) e dos republicanos (os pica-paus rio-grandenses, depois chimangos). Os colorados e os republicanos eram mais urbanos, dispunham de líderes formados em universidades, principalmente advogados. Esses consideravam que os estancieiros atrasavam o progresso com suas revoluções a cavalo, sua compulsão por resolver diferenças em duelos com facões. Sentindo-se ungidos para governarem, pretendiam se perpetuar no poder, não hesitando em recorrer a fraudes eleitorais e pressões.

Adão Latorre progrediu nos dois exércitos, de blancos e maragatos, por méritos próprios. Nenhum negro alcançaria o coronelato, àquela época, inclusive comandando oficiais brancos, se não tivesse qualidades de sobra.

Em tempos de paz, Latorre era capataz no conglomerado de estâncias do clã Tavares, em Bagé. Quando foi morto, em combate, deixou apenas uma chácara aos herdeiros.


Coronel Adão Latorre - ao centro -