RETRATO DA SEMANA

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Identidade Visual dos Festejos Farroupilha 2024 / Cintia Matte Ruschel

domingo, 10 de janeiro de 2021

SOBRE O HINO RIO-GRANDENSE

 


Sexta feira, dia 08 de janeiro, as 16h, estive no programa Brasil Urgente, da BAND TV, participando de um debate sobre a polêmica causada por alguns vereadores de Porto Alegre, que se negaram a ficar de pé na execução do hino do Rio Grande do Sul por ocasião de sua posse no legislativo da capital. 

O programa é apresentado por Rogério Forcolen e teve por convidados a vereadora Laura Sito, do PT, a vereadora Mônica Leal, do PP e eu que me fiz presente na condição de letrista e pesquisador de nossa cultura regional. O tradicionalista Omair Trindade também participou por telefone. 

Desde o princípio deixei bem claro que não estava ali para julgar o acontecido na Câmara. Cada qual é responsável por seus atos. Minha função era, exclusivamente, analisar poeticamente a letra do hino e opinar se o mesmo tem conotação racista.

Não penso que o hino tenha este intuito e, para tanto, levo em consideração a personalidade do autor da letra, Francisco Pinto da Fontoura, o tempo e o ambiente em que viveu e as circunstâncias em que a letra foi construída. Vejo na composição, isto sim, um brado de guerra, uma convocação, um chamamento a luta para todas as pessoas de mesmos ideais republicanos pois, em caso de derrota, se tornariam escravos do império. 

Digo isso porque não podemos analisar somente a frase em discussão, ou seja, "povo que não tem virtude acaba por ser escravo". Há um verso importante, antes, que dá sentido a estrofe: "mas não basta pra ser livre, ser forte aguerrido e bravo", ou seja, não adianta a pessoa ser forte, aguerrida e brava e ficar no seu rancho tomando mate enquanto os seus parceiros saem a campo de batalha. Tem-se que ter a virtude de pelear pelo seu povo, pelo seu chão, pelo seu pão. Considero este versejar uma evocação ao combate.  

Além disto, para alicerçar meu posicionamento, me debruço em três pontos fundamentais: 

a) Os Lanceiros Negros e seu comandante Teixeira Nunes foram grandes heróis desta revolução. Eles sustentaram, no braço e no cabo da lança, dez anos de enfrentamentos com menos homens, armas e cavalos, mas sobrando valentia. Francisco Pinto da Fontoura convivia com eles, dependia da coragem destes guerreiros para levar os sonhos de liberdade adiante. Iria, o autor do hino, dar um tiro no pé com uma letra ofensiva aos seus correligionários? 

b) Maestro Mendanha, o autor da música, contemporâneo de Francisco Pinto da Fontoura, era negro. Regia a banda imperial e estava preso em Rio Pardo. Não era gaúcho mas gostou tanto deste solo e deste povo que por aqui se aquerenciou e nunca mais foi embora. Sendo parceiros musicais o "Chiquinho da Vovó" faria uma letra racista em cima de uma melodia feita por um negro?

c) Na certidão de nascimento de Francisco Pinto da Fontoura, nascido em Rio Pardo em 1793, não consta o nome da mãe, apenas do pai na condição de solteiro (por isso ele foi criado pela avó paterna). Segundo os escritores esta omissão era um fato comum quando a mãe era índia ou... negra. Como em Rio Pardo havia poucos índios e uma colônia muito grande de escravos negros, existe a grande probabilidade de que sua genitora tenha sido uma mulher negra. Ele faria uma letra difamando suas próprias origens? 

Reforça minha teoria de que tal hino é um brado de guerra o escritor Walter Spalding, letrado que debruçou-se sobre a temática Guerra dos Farrapos e que por ocasião da escolha do hino do Rio Grande do Sul, nas comemorações do Centenário da Revolução Farroupilha, em 1935, foi defensor de uma das três letras apresentadas pelo Instituto Histórico e Geográfico. Defendia, Walter Spalding, a letra do Coronel Joaquim de Alencastre. Havia uma segunda versão de autor desconhecido e a terceira de Francisco Pinto da Fontoura que, ao final, saiu-se vencedora. 

Para influenciar os eleitores ele (Spalding) e seus companheiros de pensamento usaram de todos os meios inclusive desqualificando Francisco Pinto da Fontoura ao apelidarem-no de "Chiquinho da Vovó" (seu apelido real era Chico da Fontoura). Mas a grande alegação de Walter Spalding é de que, embora bonita, a letra do "Chiquinho da Vovó" tinha um "caráter essencialmente guerreiro e que aquilo poderia gerar balelas separatistas" e que "poderia afetar o sentimento de brasilidade do gaúcho". 

Em nenhum momento, portanto, Walter Spalding usou do argumento de letra de cunho racista, fator que derrubaria seus oponentes. 

Mas isto é motivo para horas de discussões, entre um chimarrão e outro, além de folhas e folhas de escritos. 

Acho que foi um debate válido, profícuo e proveitoso. Respeito opiniões contrárias e concordo que as pessoas que sentem-se ofendidas lutem por seus direitos. Contudo, até que me convençam do contrário, não vejo o hino como racista. A escravidão dos negros não só no Rio Grande do Sul foi um dos episódios mais tristes da nossa história e muita coisa precisa ser recontada mas penso que o propósito de Francisco da Fontoura, o Poeta dos Farrapos, ia além da cor da pele. 

A escravidão vem do começo da humanidade  e nos embates bélicos os povos derrotados tornavam-se escravos dos vencedores. Isto acontecia até na África, em suas guerras tribais, cruzou pelo período colonial e hoje perdura nas mulheres subjugadas, no trabalho infantil, na mão de obra de pessoas que trabalham 14 horas diárias em troca de um prato de comida... 

Estamos num momento muito complicado onde caminhamos no fio da navalha e tudo é motivo para ponderações. Em meio de minha fala usei a palavra "denegrir" e fui cobrado pela vereadora Laura. Peço desculpas mas, assim como Francisco Pinto da Fontoura, não tive a intenção de ferir ninguém.

Ao final percebo que o hino está servindo de mote para um enfrentamento de ideologias políticas partidárias e nesta canoa não devo embarcar. Por tal motivo vou evitar de manifestar-me novamente a respeito.  

O momento engraçado do programa foi quando falei que fui presidente da Estância da Poesia Crioula. O apresentador não perdeu a olada e retrucou que vamos ter que trocar o nome da entidade. Todos riram, inclusive a vereadora Laura Sito. 

Vi minha presença no programa como positiva pois consegui expor uma vontade antiga que trago comigo, ou seja, que estas autoridades se organizem para erguer um memorial aos Lanceiros Negros. Temos monumentos a Bento Gonçalves, Garibaldi, Anita, Osório, Caxias, e nada que eternize a luta da Primeira Brigada de Cavalaria destes heróis traídos e injustiçados.