RETRATO DA SEMANA

RETRATO DA SEMANA

domingo, 31 de janeiro de 2021

O FARELO DE CADA UM

 

Texto do jornalista Rafael Vigna sobre o Farelo Lima, figura querida e tradicional do Festival da Barranca, de São Borja, que nos deixou recentemente.  


Farelo Lima


Era uma sexta-feira. Dia 7 de março de 2020. Desacreditado do mundo, mandei às favas um colega de profissão que contemporizava, nas redes sociais, o trato de certo governante com os profissionais de imprensa. Indignado, dei de mão numa mochila e sai porta fora:

- "Vou lá pro Farelo", pensei, sem titubear. Às vezes essa era a única opção para seguir adiante!

No caminho, três garrafas de vodca pra mim, e três de canha pra ele. Num trote largo, a pé, cruzei o cemitério. Uma camionete ofereceu carona, economizei kms de caminhada e poupei sábias horas de convívio.

‘Así és’ – alguns parceiros sabem ainda que me repreendam. Do nada, eu atendia de bom grado aquele chamado. Uma espécie de convocação que repetidas vezes enviei a mim mesmo. Nestes momentos, eu precisava-o. Sempre gostei de ouvi-lo. Tratava-o como um filósofo. Inseparável do Rio, com conhecimento de barro e corredeiras de sonhos. Ontem mesmo, recebi de uma prezada amiga as palavras de Manoel de Barros sobre Sócrates e não me furtei da comparação:

“(...) Não tinha certezas científicas. Mas aprendera coisas di-menor com a natureza. Aprendeu que as folhas das árvores servem para ensinar a cair sem alardes. Disse que fosse ele um caracol vegetado sobre pedras, ele iria gostar. Iria certamente aprender o idioma que as rãs falam com as águas e ia conversar com as rãs. E gostasse mais de ensinar que a exuberância maior está nos insetos do que nas paisagens (...)”

Reconheço o quanto ele nos falta. É o primeiro rastro de um Farelo que viverá em mim. Ele existiu para muitos. Foi único em perspectiva. “Houve um Farelo pra cada interlocutor”, arrisco-me a dizer. O meu, punha-me nos trilhos com uma ralhada, geralmente, precedida de um “qué sé yo”. Relutava, mas por fim dedilhava um Atahualpa Yupanqui.

Volto àquela sexta-feira, em que se desconhecia que a Barranca, neste ano, também nos faltaria. É que naquele dia, algo já me dizia:

- "Vai ser o último", eu insistia. Dormi na varanda, no apagar dos goles, coberto pela fumaça do fogo e dos palheiros. Acordei envolto por uma manta, com os ventos de uma manhã – destas que anuncia o outono – a esparramar um caderno de anotações. Juntei, de pronto, algumas folhas e um rabisco me despertou a atenção. Guardei-o no bolso e esqueci-me de questionar o anfitrião a respeito dos versos que não pude devolver em vida. 

Veio a pandemia, o mundo virou do avesso e o papel se conservou. As linhas do garrancho pretendo devolver à Sabrina, mas não sem antes lançá-las ao mundo, feito aquele minuano da luminosa alvorada do nosso derradeiro encontro.

Diziam assim:

“Cada um com suas manias

Seus jeitos e seus defeitos

Direitos e obrigações

De manhã quase nem todos

Ainda bem que o cavalo

Parceiro de lida bruta

Me leva mais reculutas

Nos devaneios de peão

Tem dias que dá vontade

de estar.... (incompreensível)

Pois até Deus manda um raio

Nos dias de temporal

E toma um mate

Mais outro

E eu entendo por que um potro

Se rebela no palanque...

Ninguém gosta de ser esporeado

Ou surrado de rebenque.

(*) Farelo Lima”

Divido essas passagens com os amigos, porque algo me intrigou, até que um dia compreendi. Existem, por certo, registros formais da passagem deste pequeno grande homem pelo nosso espectro. Nada, contudo, que resguarde e sintetize em exatidão o que representa a figura humana. Cancioneiro, fez-se guardião de uma tradição oral, preferiu SEMPRE o viver ao registrar. Afinal, não se preserva a espontaneidade em vidros de Nescafé. Mas, pelo contrário, é possível sorvê-la em tragos de pura no gargalo e pitos de jujo no palheiro.

Penso que o Farelo era, de fato, uma estrela cadente. Quem viu, viu... Quem não viu, não mais verá. Percebo que o ‘Homê Véio’ foi tal qual a Luna Tucumana daquela canção. Neste enxugar da última lágrima, contento-me em dedicar ao teu espírito – agora mais livre do que vivo – os versos de Don Atahualpa com a certeza de que "en algo nos parecemos".

Milonga-te, meu irmão! E permita, se possível, que nós – os que aqui permaneceremos por mais algum tempo – possamos buscar-te em recuerdos pelos luares do outono, homenagear-te a cantarolar, nas barrancas, à beira do fogo, por entrelábios de um cochicho, o silêncio que tomaste por irmão gêmeo daqueles que, como tu, também souberam “viver sós”!

“Yo no le canto a la luna / Porque alumbra y nada mas / Le canto porque ella sabe / De mi largo caminhar / Ay lunita tucumana / Tamborcito calchaquí / Compañera de los gaúchos / En las noches de Tafí / Perdido en las cerrazones / Quien sabe vidita / Por donde andaré / Mas, cuando salga la luna / Cantaré, cantaré / A mi Tucumán querido / Cantaré, cantaré, cantaré / Con esperanza o con pena / En los campos de Acheral / Yo he visto la luna buena / Besando el cañaveral / En algo nos parecemos / Luna de la soledad / Yo voy andando y cantando / Que es mi modo de alumbrar.

(*) Atahualpa Yupanqui”