QUE SÓ OS GAÚCHOS ENTENDEM
Texto bem humorado (e nem tão verdadeiro assim)
publicado na Revista Exame.
Um roteiro para ninguém se perder entre os inúmeros
significados de bah, tchê e capaz
Por: Luísa Dalcin para Abril Branded Content
No Brasil inteiro, o 7 setembro é o
momento de celebrar a independência, a nação, cultivar as tradições e cantar o
hino a plenos pulmões. Acontece que, no Rio Grande do Sul, rola uma pequena
adaptaçãozinha. A data para isso tudo se estende ao dia 20, dia da Revolução
Farroupilha, guerra travada entre o Estado e o Império Brasileiro em 1835, em
que os gaúchos se renderam mediante acordo dez anos depois. Desistiu-se da
independência, mas a data comemorativa ficou, polêmica que só. Seja como for, o
Rio Grande aproveita o dia 20 de setembro para exaltar a beleza do Estado e
resgatar os costumes das antigas gerações.
Em parceria com o Bradesco, patrocinador
da Semana Farroupilha, a gente aproveita essa lista para explicar algumas
peculiaridades da cultura gaúcha que só quem é de lá consegue entender.
1. Bah e Tchê não significam a mesma
coisa
O “bah” é quase um suspiro que,
dependendo da entonação, serve para externalizar basicamente qualquer
sentimento que existe: decepção, alegria, espanto, medo, admiração, raiva. O
“tchê” é uma interjeição exclamativa para chamar a atenção de alguém. Tem quem
acredite que “tchê” significa “cara”, mas é muito mais intenso que isso: “tchê”
significa “bah, cara!”. Também vale destacar o uso do “tri“, uma versão
minimalista, adaptada pela geração Y, do antigo “tri legal”, que caiu em desuso
nos anos 1990; e explicar o uso do “capaz”: o exclamativo “capaz!” significa
“não precisa” ou “não se preocupe“. Enquanto isso, dizer “bem capaz” significa
“não” e dizer “capaz que não” significa “sim“. Entendeu?
2. O chimarrão é amargo e pelando de
quente mesmo
E não, você não pode tomar só um
golinho. E colocar açúcar, pode? Bem capaz! E nunca mais diga essa barbaridade!
Quando os índios guaranis e caingangues começaram a usar a erva-mate por lá, no
século XVI, eles nem sabiam que estavam abrindo caminho para a tradição mais
rígida e regrada do Rio Grande. Tudo começa na preparação: o anfitrião monta o
mate na cuia, com a erva e a água quente (que não pode ferver: servi-la com
menos de 80 graus é o ideal para não amargar ainda mais a bebida) e toma o
primeiro. A partir daí, compartilha com os amigos e familiares da roda, sempre
respeitando a ordem inicial. Esse é um ritual de amizade, cumplicidade e
companheirismo, repetido sempre que se está em grupo ou se recebe visitas. Quer
entrar na roda? Tome seu “chima” na sua vez até ouvir o roncar da bomba, não
tire ela do lugar e não fique com nojinho de dividi-la com os outros. Se você
fizer qualquer movimento que saia do script, vai ouvir um sonoro “tchê!” com
tons de julgamento.
3. Curtir o inverno é lagartear comendo
bergamota sem atucanação
Que, traduzido do gauchês, é o mesmo que
estirar-se ao sol comendo mexerica sem incômodo. Algumas expressões gaúchas
podem soar pornográficas, como “cacetinho” e “rabo quente“, que significam
inocentemente pão francês e aquecedor de água. Doce de leite, no Rio Grande, é
“mumu“, geleia é “chimia” e “chocolatão” faz mais referência ao mar de Capão da
Canoa do que a um chocolate grande. Uma vitamina de frutas, em gauchês, é uma
“batida de frutas“. E uma batida de carros, um acidente, é, na verdade, uma
“pechada“. Algumas palavras do dicionário riograndense têm origem no espanhol,
como essa, “pechar”, que vem de “pecho”, ou seja, “chocar-se de peito”.
4. Todo mundo (ao menos acha que) já viu
o Cigano Igor
Você com certeza lembra de Ricardo
Macchi, um dos protagonistas da novela Explode Coração, de 1995. Acha que o
ator anda sumido? Não tanto para quem mora em Porto Alegre, onde ele é uma
espécie de lenda. Sabe aquela história levantada pela série How I Met Your
Mother de que você não é nova-iorquino de verdade a menos que tenha cruzado
alguma vez com o Woody Allen? Pois é. A adaptação gaudéria é: você não é
realmente porto-alegrense se ainda não encontrou com o “Cigano Igor” na
padaria.
5. Nem toda carne é considerada carne
Você vai em uma lancheria (lanchonete em
gauchês) e pede por um pastel sem carne. O garçom oferece um de frango. Você
reforça: “sem carne, moço”. “Ah, temos de presunto e queijo, serve?”. Não
duvide: isso pode acontecer. Gaúcho só reconhece como carne aquela que puder
ser pedida mal passada, sangrando – o que acaba excluindo da conta o presunto,
o salame, o frango, a salsicha… Até o feijão normal, do dia a dia, tem cara de
feijoada no Rio Grande do Sul, pois costuma vir com carne dentro. Uma pesquisa
sobre comportamento e consumo do Target Group Index, do IBOPE Media, divulgada
em 2012, concluiu que Porto Alegre é a capital com o menor índice de
vegetarianos do Brasil (cerca de 6% da população da cidade é vegetariana,
contra 8% da média nacional). O Estado não é o ambiente mais propício do mundo
para quem não come carne, mas, felizmente, a situação tem melhorado nos últimos
três anos, com a diversificação dos cardápios e um aumento significativo de
feirinhas e festivais veganos pelas principais cidades.
6. Gaúcho esquece dos plural
Não é de propósito, mas acontece. É
quase como se fizesse parte do nosso charme. Em algumas regiões, antes do
churrasco, se vai no super para comprar umas carne e umas cerveja. E pagar tudo
com a moeda local, o pila, que também não tem plural. As carne e as cerveja
custam uns 30 pila.
7. Expressões e ditados gaudérios
enriquecem qualquer conversa
“Frio de renguear cusco“, por exemplo, é
uma das expressões mais usadas e significa “frio que faz até cachorro tremer”.
Outra expressão ótima é “me caiu os butiá dos bolsos“, que significa surpresa,
choque. Veja bem: caem “os butiá” e não “os butiás”. Butiá, por sua vez, vem da
miúda fruta alaranjada de palmeiras do mesmo nome, que são nativas da região.
Ditados como “se fazer de leitão vesgo para mamar em duas tetas”, “mais
contente que lambari de sanga” e “mais firme que prego em polenta” também são
de autoria gaudéria. Outra expressão muito usada é “moral de cueca“, que
significa dar lição de moral quando não se tem nenhuma. Só não confunda “moral
de cueca” com “cueca virada“: o segundo é esse doce da foto, feito de farinha,
ovos e açúcar.
8. X-coração é um patrimônio valioso
Não é igual a um sanduíche e também não
é igual a um hambúrguer, não adianta insistir. O “pão de xis” é diferente, mais
massudo, e vai prensado com o recheio a escolha: o de coração de galinha é bem
tradicional, mas também pode ser de estrogonofe, de filé à parmegiana ou o
chamado “entrevero“, que leva basicamente todas as carnes disponíveis no
cardápio.
9. O Uruguai é logo ali
A cidade uruguaia Rivera, polo de free
shops e lojas de produtos importados, e a gaúcha Sant’Ana do Livramento, são
separadas apenas por uma praça com duas bandeiras: a brasileira e a uruguaia.
As duas cidades convivem tranquilamente e o portunhol é praticamente o idioma
oficial da região. Antes da crise e da alta do dólar, quase 200 ônibus saindo
do Brasil, com gaúchos cheios de sacolas e malas vazias, chegavam a Rivera nos
fins de semana e feriados. Claro que a motivação de quem atravessa essa
fronteira simbólica é comprar eletrônicos, perfumes e vinhos mais baratos, mas
a maioria aproveita também para dar um upgrade no churrasco do domingo, comprando
uma leva da deliciosa carne uruguaia.
10. Acredite, cuca de mumu com linguiça
é uma ótima combinação
A culinária gaúcha incorporou muita
coisa boa dos alemães e italianos que colonizaram o Estado no século XIX. Hoje,
são três milhões de descendentes de italianos no Rio Grande do Sul e muita
farinha: massas, pães, polentas e cucas são algumas das especialidades. A gente
agradece eternamente pelos pratos de massas recheadas, como capeletti in brodo
e tortéi de abóbora. Da cozinha alemã, as cucas com farofa doce e geleia são o
ponto alto, principalmente porque, no geral, elas não são sobremesa: a cuca
costuma ser consumida durante a refeição e fica ótima com linguiça.
11. Pode falar mal do Rio Grande, desde
que seja gaúcho
Vários sites fazem piada com o bairrismo
orgulhoso do Estado – e isso é permitido, desde que sejam sites locais. Só
gaúcho pode reclamar de gaúcho. O campeão da zoeira é Jair Kobe, humorista
criador do Guri de Uruguaiana, um personagem exagerado que ironiza os clichês
do gaúcho caricato da fronteira. Ele é o precursor do stand up comedy gaudério
e excursiona pela região Sul com a mesma apresentação desde 2008, fazendo
apenas algumas adaptações – e lota qualquer teatro. A fama do Guri de
Uruguaiana estourou mais ainda quando Kobe começou a fazer paródias musicais,
há alguns anos. A primeira foi Help, dos Beatles, com a letra de Canto
Alegretense, famosa canção gaúcha dos anos 1980 escrita por Nico e Bagre
Fagundes. Os últimos trabalhos peculiares do personagem são Aipim Frito, versão
do hit latino Despacito, que narra um drama na churrascaria, e 50 reais,
paródia da canção de Naiara Azevedo com Maiara e Maraisa, em que ele conta sua
decepção ao pegar no flagra um mate sendo mal feito.