RETRATO DA SEMANA

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Pinheiro Machado, ao centro, sentado, e seu estado maior - Revolução Federalista -

terça-feira, 5 de abril de 2016

DOGMAS CULTURAIS



 

Circula por aí uma manifestação da violinista e etnomusicóloga Clarissa Ferreira, nascida em Bagé e residindo atualmente no Rio de Janeiro, onde cursa doutorado.
 
Clarissa, em sua crônica, se debruça em dois pontos principais. Na proibição de mulheres no Festival da Barranca, em São Borja, e nas dificuldades encontradas pelas mulheres dentro da musicalidade gauchesca e do meio tradicionalista como um todo.
Sem prejudicar o contexto, publicamos abaixo alguns tópicos principais de sua manifestação: 
"Os mesmos jornais que noticiam o acontecimento do festival também evidenciam a ausência de mulheres, o que demonstra a qualidade, no mínimo excêntrica, deste evento. Afinal, que festivais de música atualmente proíbem a entrada de mulheres? (Quando comento fora do estado que no Rio Grande do Sul existe um festival com estas características as pessoas ficam estarrecidas!).
Os motivos para a proibição de mulheres no festival seriam dignos de riso se não fossem altamente nocivos. O risco de assédio às mulheres, caso a presença fosse permitida, é o mais enfatizado. Que isso pudesse ocorrer não temos dúvida, afinal mulheres sofrem assédio praticamente todo o momento e em todos os lugares. Esta justificativa explicitamente reduz a mulher a objeto sexual como sendo esta sua única função.
Também argumentar sobre as condições precárias de estadia como justificativa, só demonstra como ainda a mulher é vista como frágil, estando sempre subordinada ao homem (resistente macho provedor).
Todas as justificativas que ouço sobre a proibição de mulheres no festival, ao meu ver, recaem em uma única explicação: a falta de interesse em ouvir o que a mulher tem a dizer. Vocês já se perguntaram como seriam nossos entendimentos sobre a cultura gauchesca? Por que o eu-lírico da música gaúcha tem que ser sempre masculino? Possivelmente seja porque nossos discursos não tenham por objetivo exaltar o mundo masculino (e suas peripécias) que é o que parece ser o cerne e o intento da cultura gauchesca.
Por que o eu-lírico da música gaúcha tem que ser sempre masculino? Possivelmente seja porque nossos discursos não tenham por objetivo exaltar o mundo masculino (e suas peripécias) que é o que parece ser o cerne e o intento da cultura gauchesca. Esta, como sabemos, foi construída e alicerçada a partir das representações do masculino. Segundo o antropólogo Roberto Da Matta “afigura masculina é predominante nos locais que, como o Rio Grande, tem suas identidades forjadas pelas questões políticas. Os gaúchos foram republicanos antes do restante do país. E o que quer dizer ser republicano? Quer dizer igualdade perante a lei, ter uma constituição que vale para todos, etc. Esses elementos acabam determinando uma imagem de um cara que luta pelos seus direitos, é assertivo, fala alto – e que acabou simplificado como machão”.
A ideia que há um importante festival no estado que não permite a presença de mulheres, demarca que nosso lugar nesta cultura é restrito. A falta de credibilidade gerada pela estereotipação das diferenças de gênero chega a um ponto tão limitador para a mulher que ela nem pensa sobre o quanto está sendo lesada. Um exemplo disso é a quase inexistência de compositoras na música gaúcha, acentuada pela falta de referências femininas, desfavorecendo assim o incentivo ao ingresso e permanência neste fazer musical. (Apesar de trabalhar 8 anos efetivamente no meio gauchesco e seus segmentos, só fui perceber que também poderia compor aos 28 anos através da aproximação com mulheres compositoras no Rio de Janeiro.)
Vinícius Brum certa vez escreveu: “Passamos a vida mergulhados em águas profundas, e vamos anualmente para aquela barranca de rio, em São Borja, para recarregar nossos tubos de oxigênio. (...) se não vamos, morremos um pouco, morremos um tanto por absoluta falta de ar, de sonho, de música e de uma irremediável saudade do mato, do rio, dos amigos e da nossa, talvez, única e melhor possibilidade.”
Somos excluídas dessa e muitas outras vivencias. À nós, mulheres, só nos cabe como nos poemas e músicas gaúchas esperar em casa e admirar tão grande feito masculino. Apesar de não vivermos mais no século XIX, as ideias ainda permanecem e as situações se repetem. Ainda continuamos a esperar que os homens nos deem licença ou permissão para que possamos nos expressar. A liberdade da mulher, o direito de ir e vir feminino nas veredas da música gaúcha só vai ainda até onde os homens permitem."
Nota do blog: Respeitamos a posição da violinista mas não concordamos, no todo, com seus argumentos.
Em relação ao Festival da Barranca, que proíbe a participação das mulheres, temos que analisá-lo como um evento diferenciado dos demais festivais. Ele foi criado há 45 aos por meia dúzia de amigos, músicos, pescadores e naquele contexto de rio e mato criaram suas regras que são mantidas até hoje. É algo próprio, como a maçonaria que dentre suas "Leis Imutáveis" proíbe o ingresso de mulheres ou como as antigas tradições japonesas que determinam a mulher caminhar um pouco atrás de seu marido. Isto é machismo? Analisando caso a caso pensamos que não. O machismo é uma situação deplorável e vai muito além dos dogmas culturais.
Num passado recente foram criadas as lindas Cavalgadas de Prendas, onde existe a proibição da participação de homens. Isto é feminismo? Também pensamos que não.
No tocante a musicalidade gauchesca, ela se debruça, 80%, na história riograndense sendo que esta (história) ocorreu, principalmente, em funções das guerras de fronteiras e do dia-a-dia campeiro onde a presença do homem era maciça. Esta vivência influencia, e muito, na hora de compor. Talvez daí a dificuldade feminina na elaboração de uma letra. 
Mesmo assim são diversas as participações de mulheres em festivais, principalmente de poesias. 
Talvez por estar morando no Rio de Janeiro a autora do texto não tem acompanhado a evolução feminina dentro do tradicionalismo. São inúmeras prendas trabalhando em prol da preservação de nossos costumes nas linhas de frente de suas entidades como coordenadoras regionais, patroas de CTG (o mais antigo de todos - 35 CTG  - há anos é dirigido por mulheres), e outras tantas funções de comando. Isto sem falar nas competições campeiras dos rodeios crioulos onde as mulheres tem presenças destacadas laçando e, até mesmo, domando.  Que assim seja!