RETRATO DA SEMANA

RETRATO DA SEMANA
A tomada da Ponte da Azenha, do pintor Augusto Luiz de Freitas (Instituto de Educação General Flores da Cunha, Porto Alegre/RS)

domingo, 25 de agosto de 2024

 

O ÍNDIO QUE PERDEU PARA O LAÇADOR 


O Gaúcho, de Vasco Prado.


Fonte: Karina Dalla Valle

Todo gaúcho conhece O Laçador, mas poucos sabem da história por trás do monumento e muito menos que ele teve um forte concorrente: um indígena segurando uma lança e calçando botas de garrão de potro. Há 70 anos, as duas obras disputaram um concurso entre grandes escultores do Estado. O propósito era eleger a imagem que melhor representasse o homem dos pampas. O trabalho de Antonio Caringi (1905-1981) foi eleito e tornou-se um símbolo. Já o de Vasco Prado (1914-1998) permanece pouco conhecido.

Enquanto O Laçador foi erigido em 4,5 metros de bronze e repousa em uma das regiões mais movimentadas de Porto Alegre, em frente ao antigo terminal do Aeroporto Salgado Filho, a obra de Vasco Prado está recolhida no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs). Ambas foram feitas em 1954, a convite da Secretaria Estadual de Agricultura, com o mesmo objetivo: tornar-se a escultura que iria adornar o estande do Pavilhão Rio-Grandense montado no Parque Ibirapuera durante uma feira que celebrava o 4º Centenário de São Paulo.

Dorso nu, chiripá, boleadeira envolvendo a cintura e botas de dedos para fora representando a simplicidade do homem do campo, o gaúcho indígena de Vasco Prado foi batizado de Gaúcho Farrapo. Trata-se de uma maquete em gesso com 108cm de altura. Historiador da arte que pesquisou sobre o concurso que buscava a melhor representação do gaúcho, Diego Beck entende que Vasco, nascido em Uruguaiana e filiado ao Partido Comunista, foi intencionalmente provocativo ao sugerir uma figura que entrou para os livros de história por ter sido subjugada pelo homem branco europeu.

— Ele representou o gaúcho indígena, o gaúcho como primeiro habitante dessa região. Já um pouco aculturado, é verdade, porque ele tem o chiripá e o cinturão, mas também tem a lança. Sem dúvida, Vasco queria trazer à tona a raiz indígena que tentávamos esconder. Ele quis provocar. O Vasco era filiado ao Partido Comunista e não era muito bem quisto por causa disso. Não sei se ele imaginou que pudesse ganhar.

Caringi inscreveu três maquetes: Boleador, Bombeador e Posteiro (que ficaram, respectivamente, em primeiro, segundo e terceiro lugar), sendo que a primeira virou O Laçador após modificações solicitadas pelo júri. Naquela época, o pelotense que estudara Belas Artes na Alemanha já era visto como o maior estatuário do Estado, tendo no currículo o Monumento Equestre ao General Bento Gonçalves e o Monumento ao Expedicionário, ambos em Porto Alegre.

Vasco Prado e seu gaúcho indígena ficaram em quarto lugar. Consta nos jornais da época que ele retirou o trabalho do concurso quando soube a opinião do júri. Não se sabe o motivo. O terceiro convidado era Fernando Corona (1895-1979), que batizou sua maquete de Peão da Estância, classificada em último lugar. A obra, contudo, é dada como perdida.

Gaúcho Farrapo foi adquirido pelo Margs em 1955, tendo sido uma das primeiras obras a compor o acervo do museu, surgido um ano antes. No catálogo, foi rebatizado apenas de Gaúcho. Fundador do museu, Ado Malagoli deu a seguinte declaração: "O primeiro artista adquirido, aliás em situação polêmica, tinha perdido o concurso para o Laçador, de Caringi, foi Vasco Prado, que considero um artista de âmbito nacional", segundo consta no livro Memória do Museu (2004), organizado por Paulo Gomes e Vera Grecco.

Antonio Caringi e Vasco Prado apresentam tipos de gaúcho radicalmente opostos. Enquanto um representa o descendente do europeu colonizador, outro resgata a figura mais primitiva, a que foi colonizada. Ao estudar as duas obras e as influências de cada artista, Diego Beck chegou à conclusão de que ambas abordam com veracidade a formação do Rio Grande do Sul.

— Quando colocamos O Laçador de um lado e Gaúcho, do Vasco, de outro, vemos que são coisas muito diferentes. Porém, não podemos negar que o gaúcho tem um pouco do Laçador, desse homem lusitano, mas também tem do indígena. Só que as pessoas se esquecem de tudo isso — diz.

Anos antes do concurso que escolheu O Laçador, já havia um apelo por uma imagem que representasse o gaúcho ideal. Em 1935, Porto Alegre recebe de presente da comunidade uruguaia o monumento Gaúcho Oriental, instalado no Parque da Redenção. A imagem fundida em bronze por Federico Escalada mostra um peão em pose apoiado em um tronco como se descansasse enquanto contempla o horizonte. Contudo, o movimento tradicionalista que ganhava força naquela época queria algo mais emblemático, conforme conta o historiador da arte José Francisco Alves no livro A Escultura Pública de Porto Alegre (2004).

— Gaúcho Oriental é o gaúcho com mais espírito de gaúcho, bonachão, pacholento. Já O Laçador foi construído para ser um símbolo, para ser reproduzido tipo o Cristo Redentor, para ser um souvenir. O gaúcho de Vasco Prado é o que trabalha na estância, um gaúcho descendente de português e misturado com índio. É um indígena filho de português. Um mestiço, do meu ponto de vista — diz Alves.