RETRATO DA SEMANA

RETRATO DA SEMANA

sábado, 23 de outubro de 2010

PROSEANDO, SOLITO!

No clarear deste sábado cinzento, com nuvens de chumbo estaqueadas junto ao céu, nada melhor do que se recolher a solitude de um galpão, falquejar um cabo de relho, matear solito, prosear com os cachorros, bombear para dentro de si mesmo e ver o que temos feito nesta existência. Para acompanhar tal viagem, nada melhor do que uma gravura do Marciano Schimtz e um poema do José Luiz Flores, o Moró.
PROSEADAS SOLITAS

Antes...
Bem antes da luz da madrugada,
Na hora tranqüila em que a peonada
Busca sonos nos campos das lonjuras,
O velho encontra vidas no galpão,
Conversando com o próprio chimarrão
No dialeto gauchesco das procuras!

Não...
Não que ele seja assim o tempo inteiro,
Mas na hora em que só o mate é companheiro
Ele rebusca os seus fantasmas do passado
E proseia! Meu Deus! Como proseia!
Contando causos antigos de peleias
E façanhas de pingos mal domados!

Embora os olhos parados no horizonte,
É visível, nessa imensa solitude,
Um trejeito feliz na face rude,
Com a lembrança repentina dos caudilhos.
O chimarrão irmana os peleadores
- Fraterno abraço entre Onório e Flores,
Em transmissão de paz para seus filhos!

No ritual de bater tições,
As faíscas são reses de tropeadas
Que se perderam na poeira das estradas,
Em um tempo qualquer que já se foi;
Mas que o velho traz para o presente
E assopra para o alto, de repente,
Num grito saudoso de "Eira-boi"!

Nos olhos de lágrimas ardidas
Reencontra, nas tropeadas obscuras,
As mesmas horrendas criaturas
Que povoaram seus medos de criança.
E esconjura esses fantasmas de guri,
Como se as mulas-sem-cabeça e os sacís
Não fossem apenas páginas da infância!

Pousa o olhar cansado e absorto
No tremelico das sombras do candeeiro,
E recorda vividos entreveiros
No comando de cargas e investidas;
Gritando, numa síncope caudilha,
Brados que a epopéia farroupilha
Fez valerem mais que muitas vidas!

E passeia por um mundo que é só seu,
Até que a noite, matiz de picumã,
Incendeia-se nas barras da manhã.
E o galpão se transcende em realidade.
Então o velho volta a ficar mudo,
Mas, mesmo assim, consegue dizer tudo,
Com os olhos molhados na saudade!

E quando o piazito diz: - Vovô, conta uma estória,
Dessas que o senhor inventa muitas vezes:
De brigas, de tropeadas e de reses...
Dessas que só o senhor sabe inventar!
Então o velho levanta os olhos suavemente
E murmura para o neto, indiferente,
- Deixa pra lá... Você não vai acreditar...