RETRATO DA SEMANA

RETRATO DA SEMANA
A tomada da Ponte da Azenha, do pintor Augusto Luiz de Freitas (Instituto de Educação General Flores da Cunha, Porto Alegre/RS)

domingo, 7 de novembro de 2021

CAUSO DE GALPÃO

 

BOCA-GRANDE, TROVADOR. 

Bier

Do livro Rapa de Tacho Vol. 3 / Apparício Silva Rillo


Não há, dentre os antigos de Uruguaiana, quem não haja conhecido o João Boca-Grande, também chamado "Jacaré" pelos mais chegados.

Analfabeto, gago de fazer pena, alma inquieta como um galho de sarandi tocado pelo vento, o Boca-Grande não aquentava lugar. Um mês numa estância, duas semanas noutra. Bueno para a lida de campo, melhor para a trova. Cantando, não gaguejava. Ao mi maior de gavetão abria o peito e dava gosto ouvi-lo improvisando sobre sua vida de andejo, amores não florescidos, gauchadas, ganhas e perdidas. Até na "rádia" já se apresentara, trocando puas com povoeiros com fama de imbatíveis. Na época em que os programas de auditório eram a televisão do povinho, Boca-Grande era atração da assistência. Boa pilcha, estampa de guapo, voz bem afinada, tinha torcida fiel. E ganhava, geralmente, o que significava cinquenta mil réis para uma visita ao mulherio que se pinta, bebe cerveja e dorme tarde. 

Seu maior problema quando apartava uma dama do seu gosto era entreter a conversa que antecipava o pouso. Entre arrancos e marchas a ré, chiados e vogais repetitivas, o papo do Boca-Grande fazia rir a parceira. Brabo, ficava ainda mais gago. E não foram poucas as vezes em que "bolacheou" a dama, virou a mesa e deu rodeio para quem se metesse. Lá se ia o pouso, o dinheiro, a troco de um olho roxo, de uma camisa rasgada, de um dedo destroncado pelos rudes bofetões que distribuía. 

Benquisto, apesar de tudo, nunca lhe faltou aonde se apeonasse.

Há mais de três meses empregado em uma estância perto da cidade, o Boca-Grande ganhou a confiança dos patrões. Quando estes, aos finais de semana, iam para Uruguaiana, ficava o Boca-Grande de caseiro, cuidando das casas, amilhando os parelheiros, dando bóia para a criação menor, a cozinha a sua disposição, carne a vontade se resolvesse assar um churrasco. 

Num sábado a noite o Boca-Grande boleou a perna num cavalo assoleado à frente da casa dos patrões, na cidade. Bateu à porta desesperadamente, e foi atendido pela senhora. Nervoso como nunca, não conseguiu transmitir a patroa o recado que trazia. Esta - prevendo que algo de grave acontecera - e sabendo que cantando o índio não gaguejava, sugeriu: 

- Calma, seu João. Dê o recado cantando.

Foi pedir e ter a volta. Boca-Grande recuou dois passos e abriu o peito: 

    - Prendeu fogo na fazenda
      eu aqui vim lhe dar fé. 
    Tá tudo virado em cinza
        não ficou nada de pé...